domingo, 17 de maio de 2015

Libertário e opressor: as contradições do rap nacional

“Esse é o rap, é o rap, é o rap, eu me expresso
Muito mais que moda é manifesto
Sente o dom, é cruel, dos irmão, Deus do céu
Pra trava se pá o click blaau”
Rap é Forte – Criolo


Cone Crew Diretoria
Denunciado pela sogra, como uma retaliação as agressões que cometia a própria namorada, o música Cert do grupo de rap Cone Crew Diretoria, trouxe novamente para o debate público a política de drogas no Brasil. Encontrado com quatro pés de maconha em seu apartamento, o artista também está sendo acusado por tráfico de drogas. Tratando-se de um assunto tão delicado e que ainda é um tabu para a maioria dos brasileiros, nesse sentido, o rap cumpre o papel de vanguarda na exposição da temática para o público. Porém, ao mesmo tempo, pouco se repercutiu as acusações de agressões a sua companheira. Como uma indignação seletiva, a repercussão da história tem levado ao debate a temática antiproibicionista, super importante, mas não expõe nada sobre a violência contra a mulher. A Cone Crew Diretoria, influenciados diretamente pelo Planet Hemp, apresenta uma posição política libertária, porém, ao mesmo tempo, o grupo apresenta serias contradições ideológicas. Característica comum a muitos grupos de rap no Brasil.
O Rap nacional ganhou projeção ainda na década de 90. Grupos como o Racionais Mc’s e o Facção Central são alguns dos principais porta-vozes do estilo na década. Indiscutivelmente esses grupos trouxeram aos negros das periferias brasileiras o protagonismo da sua própria história. Negro Drama, por exemplo, pode ser considerado um hino para as favelas do Brasil. Apontando as desigualdades sociais e injustiças que sofriam a população carente brasileira, o rap surgiu naquele momento como ferramenta fundamental contra o racismo e o preconceito social.

“Não foi sempre dito que preto não tem vez?
Então, olha o castelo e não
Foi você quem fez, cuzão?”
Negro Drama – Racionais Mc’s

Racionais Mc's
Na mesma década de 90 surge no Rio de Janeiro, o Planet Hemp. Alvo de dezenas de polêmicas na época, o grupo era repreendido pelos conservadores devido as letras das suas músicas que giravam em torno da legalização da maconha, um tema ainda mais tabu naqueles tempos. Nesse sentido, o rap se coloca a frente do seu tempo. Assumindo um papel progressista e de vanguarda trazendo, através das letras do Planet Hemp, um debate que só começou a desenvolver a poucos anos no Brasil, cumprindo um papel fundamental para o antiproibicionismo no país.

“O álcool mata bancado pelo código penal
Onde quem fuma maconha é que é o marginal
E por que não legalizar? E por que não legalizar?
Estão ganhando dinheiro e vendo o povo se matar”
Legalize Já – Planet Hemp

Com esse caráter contra-cultural atrelado ao fato vir da periferia, o rap cresceu sendo um produto marginalizado. Prisões, como do artista Cert, são comuns na história do rap brasileiro. Em 1997, o Planet Hemp foi preso acusado de apologia às drogas. O Racionais Mc’s também já foram presos em 94 acusados de incitar o crime e a violência. Por motivos parecidos, membros do Facção Central também foram presos.
De fato, o rap é uma ferramente militante super importante para o movimento negro e antiproibicionista. É uma resposta aos opressores. Porém, o estilo, não está livre das contradições. Pelo contrário, carrega uma série delas. Dando um caráter contraditório a voz dos oprimidos e os jogando no banco dos opressores.
O mesmo Cone Crew Diretoria no final do ano passado, por exemplo, protagonizaram um episódio lamentável nas redes sociais. O membro conhecido como Maomé postou em seu facebook uma frase extremamente machista e homofóbica. Na publicação ele critica mulheres que trocam likes e seguem de volta, afirmando: “Deveria tomar uma surra dentro de casa pra aprender a ser mulher”. Em seguida ele crítica as mesmas práticas no sexo masculino com a frase: “Já os barbados, … NA MORAL …. Vcs são mais viados do que quem dá o cú !!! Tenho nojo de vocês”. Todo esse discurso também é reproduzido em suas letras. Não só discursos pejorativos a liberdade sexual da mulher ou orientação sexual de uma maneira geral, como em Falo Nada e Chama os Mulekes, o Cone Crew reproduz normatividade e senso comum e faz vista grossa ao status quo.
Em 2013, Emicida, rapper conhecido por levar a favela em suas letras, também esteve em um episódio machista em uma das letras do seu disco O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui. Apesar de também ser autor da música Rua Augusta, um retrato humanizado de uma mãe solteira que se prostitui para sustentar o filho, Emicida escreveu a péssima Trepadeira. Na letra: “Minha tulipa, a fama dela na favela enquanto eu dava uma ripa / Tru, azeda o caruru / E os mano me falava que essa mina dava mais do que chuchu” (…) “Dei todo amor, tratei como flor / mas no fim era uma trepadeira”, deprecia uma mulher sexualmente livre e ainda aponta como punição a esse comportamento o uso da violência: “Merece era uma surra de espada de são jorge (é) / Chá de ‘comigo ninguém pode'”.

“Poupa nem os das antigas… logo um mordedor de fronha
Vai geral baixar a porrada no Pinóquio sem vergonha
Quebra o papo de cegonha que ele treme e solta as franga”
Falo Nada – Cone Crew Diretoria

Mas não é somente a nova geração que sofre essas contradições. O Racionais Mc’s apresenta uma série de letras com esses elementos. Em 1 por amor 2 por dinheiro, Mano Brown canta: “Quem é você que fala o que quer/ que se esconde igual mulher por trás da caneta/ vai Zé buceta, sai da sombra/ Cai, então toma! Seu mundo é o chão”. Na mesma música ele presta homenagem a sua raiz africana. Já em Estilo cachorro, o grupo conta a estória de um personagem masculino da favela com um certo poder aquisitivo e vida sexualmente ativa da seguinte forma: “Sexta, a Elisângela / Sábado, a Rosângela / E domingo é matinê, 16, o nome é Ângela”. Em outra parte  canta: “Au au au au, não é machismo / Fale o que quiser, o que é, é / Verme ou sangue-bom tanto faz pra mulher / não importa de onde vem nem pra que, se o que ela quer mesmo é sensação de poder”.
Porém talvez a maior contradição fique na música Qual mentira vou acreditar. Nela, Edi Rock canta um dos melhores retratos do racismo cotidiano. Desde a abordagens policiais “Eu me formei suspeito profissional / Bacharel pós-graduado em tomar geral” a uma conversa com uma garota “Que tinha bronca de neguinho de salão / Que a maioria é maloqueiro e ladrão”. O discurso racista da garota em “Disse pra ‘mim’ não falar gíria com ela, (pode crer) / Pra me lembrar que não tô na favela”, logo se torna um festival de insultos e questionamentos a vida sexual da garota: “Correu a banca toda de uns playba / Que cola lá na área” e chega ao triste verso: “Eu já tava pensando em capotar no soco”.

Karol Conká
Além disso o Rap ainda é um espaço muito restrito aos homens. Apesar da repercussão dos trabalhos de rappers como Karol Conká, Flora Matos e Lurdez da Luz, a cena ainda permanece muito fechada em círculos masculinos e ao seu universo. O protagonismo feminino tanto em discurso como em artistas ainda parece estar em um horizonte distante. Em uma entrevista ao portal Virgula no ano passado Flora Matos afirma: “O meio do rap já foi muito mais machista, (…), mas ainda existe sim. Porém, nós mulheres, quebramos isso de uma maneira muito criativa. Não vira ‘treta’, não vira ‘diz’, vira música e inspiração”. Além disso, nas letras de Karol Conká são relatadas com frequência estórias de mulheres livres e independentes que contribui com o processo de emponderamento feminino.
É quase impossível desassociar o rap do discurso político. Com contradições ou na linha de frente das temáticas, o estilo se consolida como ferramenta artística capaz de gerar reflexão e questionar o senso comum. Seja nas manifestações de afirmação da negritude com Falcão, O Bagulho é Doido, do MV Bill, seja na expressão da liberdade feminina com Batuk Freak da Karol Conká, até o grito libertário de Usuário de Planet Hemp, no grito da voz da periferia em Nada como um dia após o outro dia dos Racionais ou  no escracho das desigualdades de Convoque Seu Buda do Criolo, o Rap é compromisso e precisa superar as contradições para estar do lado daqueles que pretendem defender, isso também é um desafio da nossa sociedade.

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